Raymond Chandler | O Mestre do Noir

julho 05, 2018


Não há nada mais admirável em uma obra ou pessoa, que sua capacidade de enxergar a realidade por trás das máscaras, e Raymond Chandler e o Noir, sem dúvida alguma conseguem revelar nossa verdadeira face.

Essa aparente dicotomia que costumo expor em muitos dos meus textos e pensamentos, só é uma dicotomia porque nós realmente não estamos acostumados à uma visão de mundo que enxerga o homem de maneira tão objetiva.

Comumente, buscamos enxergar aspectos subjetivos e até etéreos para justificar, perdoar e confiar em determinadas pessoas. Se alguém te faz mal, não o faz porque é mal, o faz porque estava num dia ruim, ou porque aconteceu algo que a irritou. Você vê? Nós sempre tentamos encontrar formas de diminuir a culpa dos outros por suas ações mal-intencionadas, bem como esperamos que nossas ações sejam julgadas pelo mesmo prisma, porque até parece que nós somos pessoas ruins, não é mesmo?

Quando eu falei das máscaras no primeiro parágrafo, falo justamente dessa visão que construímos e colocamos sobre os outros e dá visão que temos de nós mesmos. Máscaras que colocamos ante as faces podres dos que nos cercam. Máscaras que colocamos ante as nossas faces putrefatas.

Partindo do ponto mais básico – que você pode identificar de forma empírica, no seu dia a dia −, nós somos extremamente egoístas. Ouso até dizer que não há absolutamente nada que façamos sem ter como objetivo alcançar algum resultado que nos beneficie.

A pergunta mais interessante, nesse sentido é:

Você faz o bem, porque o outro necessita ou faz o bem porque fazer o bem te faz bem?

É evidente que o resultado dessa obra é digno, mas note como o percurso é egoísta. Quando eu digo que talvez não exista nada, estou falando justamente disso. De certa forma, até o nosso fazer o bem está maculado pelo nosso egoísmo.

E o egoísmo é só uma das características que podemos identificar nas pessoas que nos cercam e em nós mesmos. Existem muitas outras e se você prestar muita atenção em cada ação tua, durante um dia, verá que quase todas elas estão marcadas com esse selo.

Como eu disse em outro texto, nós nunca conseguimos enxergar nosso reflexo real. Estamos sempre diante de um espelho que nos embeleza a alma, mas no fundo, eu tenho certeza que todos nós conhecemos quem somos, os pensamentos que passam por nossas cabeças, nossos desejos.

Esse espelho brinca conosco o tempo todo. Ele rouba nosso foco de quem somos, do que realmente importa e bota nossos olhos sobre nossos corpos imperfeitos, gordos ou magros demais para o padrão estético vigente. A estética é só um elemento, mas nós achamos que ele é o único elemento. E fazemos isso porque achamos que somos boas pessoas, logo, nosso eu interior está bem e o problema reside na distância que nosso eu exterior tem da beleza.

Não há nada mais admirável que uma obra ou pessoa que consiga enxergar além das máscaras.

O noir é um subgênero da literatura policial e suas histórias normalmente acontecem na cidade. O detetive em questão, passa grande parte da história “batendo perna” pelas ruas em busca de pistas que venham a ajuda-lo a resolver determinado caso. A diferença principal do Noir para os outros subgêneros da literatura policial, é a atmosfera da história.

As histórias do Noir são cercadas de ceticismo. Os personagens costumam ser bastante cínicos, principalmente o detetive, que normalmente amarga uma vida extremamente dura e ingrata. Os detetives do Noir costumam ser homens destruídos, homens que estão em pedaços. Eles não têm nada, nem dinheiro, nem família, nem amores ou direito a felicidade. São homens da rua, do trabalho e do perigo.

E por isso esse gênero é tão encantador. Enquanto os romances policiais clássicos se desenrolam em bibliotecas, navios ou vagões de trem, o noir se debruça sobre a imundície da cidade grande, percorrendo as esquinas, os becos e as sarjetas. O crime organizado, os policiais corruptos, os palavrões a desesperança. O Noir colocou os romances policiais em um ponto de contato com a vida, e justamente por criar essa ponte entre a realidade sofrida da população pós-grande-depressão e os personagens, o Noir foi o gênero mais lido na América nas décadas de 30/40.

Raymond Chandler talvez seja o maior responsável pelo sucesso do gênero. Escreveu livros, roteiros e contos, explorando a literatura de várias formas e expondo os demônios da Cidade dos Anjos (Hollywood).

Não há nada mais admirável que uma obra ou pessoa que consiga enxergar além das máscaras.

Raymond conseguiu colocar em suas histórias àquela atmosfera densa e escura que a população americana vivia naquele período. Nesse momento, não havia espaço para o luxo, para a riqueza, para as histórias de alta classe. As pessoas se viram representadas na falta de esperança, desilusão e desespero dos personagens, justamente porque estavam diante desses mesmos elementos vinte e quatro horas por dia. Suas vidas eram amargas, bem como a dos personagens do Noir.

Não é exagero dizer que Raymond Chandler foi quem tirou a linda máscara que cobria a face putrefata da luxuosa Hollywood. E aqui reside o ponto onde devemos parar, bater palmas e entender a importância dessa atitude.

Se hoje, mesmo com toda a tecnologia e a exposição das celebridades nas redes sociais, nós continuamos a vê-los como seres diferentes de nós, como superiores, interessantes e inteligentes, imagine como era a visão que o público tinha da celebridade, do rico, do patrão, naquela época.

Quando Raymond Chandler arranca a máscara daquela Hollywood, ele lança luz sobre toda a podridão que existe nos mais altos círculos. Essa luz, além de os expor, também os coloca no mesmo nível moral e na mesma espécie do “resto” das pessoas.

Uma evidência de que continuamos nutrindo esse pensamento estúpido, é a quantidade de manchetes que anunciam: “Sicrano estava caminhando na praia”, “Fulana diz que peida em frente o namorado”, percebe? Continuamos nos chocando com o que é natural, continuamos vivendo na cultura do paparazzo porque enxergamos essas pessoas num patamar acima.

Mesmo nutrindo uma visão extremamente superestimada de quem somos, nós ainda conseguimos superestimar ainda mais a visão que temos sobre as celebridades.

Quando Raymond Chandler diz que aquela Hollywood estava cheia de podridão, ele não estava falando que a população era melhor, só estava dizendo que todos eram igualmente podres e imundos, sacou?

E é assim que nós vivemos, com a ilusão de sermos boas pessoas e que nossas maldades são por conta de um momento, de um dia ruim, que nossos pensamentos são frutos do Diabo, mas nunca passa pela nossa cabeça que somos SIM pessoas ruins, que somos SIM pessoas sujas, egoístas, mesquinhas, medíocres. Isso não passa pela nossa cabeça e é justamente por isso que eu disse lá no começo: Não há nada mais admirável que uma obra ou pessoa que consiga enxergar atrás das máscaras.

Quando se conversa sem essa máscara que nos embeleza, existe muito mais honestidade. Quando você diz o que quer dizer e não o que precisa dizer. Quando você olha para si mesmo e enxerga seus pontos de loucura, tesão e tristeza e não os ignora, existe honestidade e essa honestidade não está ligada a uma determinada expectativa social, mas está ligada tão somente a compreensão de sua própria pessoalidade. Entende? Você enxerga aquele pensamento que diante de todos é errado e não o reprime, mas o compreende e isso é honestidade, sacou?

Recentemente li “A Porta de Bronze”, um livro de contos de Raymond Chandler e a partir do segundo conto, Chandler me deu absolutamente tudo o que eu estava esperando e mais um pouco. Todo o cinismo, todos os tons de cinza, os personagens bem construídos, tudo está ali. Quatro contos excelentes em seguida, um trazendo tons mais bem-humorados, outro mais sensíveis e outro bastante áspero. Chandler faz descrições muito precisas e visuais, de forma bastante direta – Outra característica do Noir −.

Essa leitura foi muito interessante porque eu tive um primeiro contato com esse autor brilhante, com o gênero do Noir na literatura e me trouxe essa reflexão acerca da importância de fazer com que as máscaras caiam.

Se você acompanha o que escrevo, sabe muito bem que um elemento recorrente nos meus textos, é a exploração interna dos personagens. Quando escrevo, a primeira coisa que faço é deixar meus personagens completamente nus. Faço com que deixem para trás todas as camadas e camadas de merda que a sociedade nos faz vestir.

Meus textos normalmente tentam construir uma atmosfera semelhante à construída por Raymond Chandler. Um elemento interessante que noto tanto na minha escrita, quanto na de Chandler e de muitos outros autores que tem esse objetivo, é a presença da noite em suas histórias.

Particularmente, sinto-me ainda mais confortável para criar provocações e personagens que revelem seu eu animal, quando a história acontece durante a noite, porque existe, até na nossa sociedade, uma espécie de dicotomia entre a pessoa que somos durante o dia e a pessoa que somos durante a noite.

Durante o dia somos funcionários, empresários, políticos, mas durante a noite somos bêbados, bissexuais, sadomasoquistas, sacou? A noite geralmente é sinônimo de liberdade. É sinônimo de pecado, de transgressão e é justamente por isso que as histórias que possuem esse objetivo, comumente são ambientadas sob a luz do luar.

Raymond Chandler descortinou a cidade dos anjos no século passado. Revelou sua podridão, seus tesões e fetiches, seus crimes. Mas, e nós? Por que continuamos fingindo que somos santos?

Chandler levou para a literatura policial um retrato da realidade e é por isso que eu digo: Que se foda Agatha Christie e seus navios e bibliotecas, a história acontece nos inferninhos, nos pontos de ônibus, atrás das árvores.

Chandler arrancou as máscaras que sorriam e exibiam dentes brancos e revelou a carne viva, repleta de larvas.

Você provavelmente não vai aceitar, provavelmente não vai assumir, mas pense em quem você é. Pense naquilo que você consome de pornografia. Pense nos seus tesões e nos seus ódios. Talvez você perceba que não é tão anjinho assim. Talvez você perceba que não é tão puro quanto imaginava.

Os tons de cinza, o cinismo, a desesperança, a depressão, o sexo, a sujeira, são recorrentes no Noir, mas você sabe que eles são ainda mais recorrentes aqui, não sabe? Na nossa vida.

Há um termo que designa esse tipo de literatura. Realismo sujo. Eu gosto desse termo. Nossa realidade é suja e nós não somos puros.

Vivemos destilando egoísmo e veneno. Vivemos imersos em falsidade e ganância. Vivemos mentindo e enganando. Pare realmente para pensar nisso. Veja como somos medíocres e quando fizer isso verá a realidade sem suas cortinas de prata e pedras preciosas. Sentirá o cheiro do prazer e do pecado, porque assim é a nossa vida.

Se me permite um conselho final.

Ao ser honesto consigo mesmo, você verá que não é bom, bem como as outras pessoas também não são. No começo vai ser difícil esperar o pior das pessoas, mas você verá que as probabilidades sempre apontam para o pior. Saiba aproveitar quando o pior não estiver diante dos seus olhos e se proteja dos outros. Ah! Assuma seus fetiches, medos, angustias e ódios. Fazer isso não vai te tornar pior que nenhum conservador. Todos somos igualmente fodidos.

Por fim, obrigado Raymond Chandler, O Mestre do Noir, por descortinar a Cidade dos Anjos e revelar seus demônios. Que essa geração medíocre possa beber de seus pensamentos e gozar novos prazeres e pecados.

Só quero te lembrar que você não é melhor, nem pior. Você é tão ruim quanto todo o resto da humanidade, então relaxe, beba, leia e foda como se não houvesse amanhã. Talvez Deus não exista, então liberte seus demônios e se divirta nessa vida que é difícil pra caralho de suportar.

E Leia Noir. Leia Raymond Chandler.

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