Do lixo ao luxo | Conto Autoral

junho 28, 2018



Nunca fale com nenhum deles. Faça o seu trabalho e vá embora. Não ouça nada, nem fale nada. E você diz que tudo bem.

Você consegue não falar se quiser, mas não dá para não ouvir.

Você está lendo um livro qualquer, pode ser um clássico ou um best-seller, não importa. Você está sentado no ônibus lendo as porcarias que aparecem na sua linha do tempo do facebook, está concentrado em perder seu tempo com aquilo, mas mesmo assim, mesmo sem querer, você acaba escutando a conversa de duas velhas no banco da frente. Então você tenta não prestar atenção, mas Márcia não deixa a velha ver o neto. Você tenta se concentrar, mas o filho da outra velha arrumou um novo emprego.

Você consegue não falar, mas não dá para não ouvir.

Não ouça nada, nem fale nada. Ela insiste em repetir.

Eu recebo uma agenda com todos os horários, é uma nova agenda todos os dias. Me organizo e trabalho enquanto eles estão fora.

Às sete e meia eu limpo o quarto de um deputado qualquer, enquanto ele está em alguma reunião de fachada.

Eu sei que é de fachada porque acabei ouvindo uma conversa.

Quando fui contratado me disseram para não falar com eles. A secretária me disse que se eu trabalhasse bem, me indicaria para outras secretárias. Ou seja, se eu fosse um bom funcionário limparia o banheiro de outros deputados, senadores e quem sabe o banheiro do presidente, talvez desentupisse a privada de algum deles!

Não deve falar com eles, nunca! Ela diz.

Quando a primeira secretária me entrevistou, eu achei que eles fossem os meus patrões, mas depois entendi que eles não eram somente eles. Quero dizer, não ouça nada, mas é claro que ela sabe que você vai ouvir, então não fale com eles. Com os jornalistas, com outros empregados, com sua família.

Você aproveita uma reunião aqui, um almoço ali, alguma votação à tarde e no fim do dia você limpou vários quartos.

Quando a entrevista termina a secretária te chama e fala um pouco sobre o seu novo chefe. Talvez você encontre alguma coisa diferente eventualmente, ela diz. Você ganha mais dinheiro por limpar essas coisas que eventualmente estarão em algum canto do quarto. Eventualmente.

Ela segura você pelo braço e te olha nos olhos. Diz que precisa confiar em você. Confiar que você vai manter segredo caso encontre alguma coisa diferente.

Então você arruma a cama. Organiza o quarto. Tira o lixo do banheiro. Tira o pó dos móveis. Aspira o carpete. E sempre encontra uma coisa diferente.

Você pode ligar o rádio, mas não muito alto. E sempre vai ter de deixar o seu celular na recepção. Eles não querem que você tire foto de algo diferente.

A entrevista já acabou. Ela já fez suas anotações, mas continua falando. Agora a conversa é por meio de sussurros.

A sala está vazia, ela está sozinha com você, mas continua sussurrando.

O peso, a responsabilidade sobre eles é enorme. Você entende, não é? Respondo que sim, na verdade só balanço a cabeça. O dia é longo e cansativo e eles precisam relaxar, não é? Balanço a cabeça de novo. Imagine só? Representar milhares de pessoas. Representar um país! Consegue imaginar? Balanço a cabeça dizendo não.

É por isso que você precisa limpar tudo no outro dia. Eles chegam cansados e precisam relaxar. E você precisa limpar tudo.

A entrevista terminou há vinte minutos. Eu fui contratado, mas a conversa continua.

Você encontra um pó branco na pia do banheiro. Você encontra o pó branco na mesa de centro. No criado-mudo. É um teste, então você limpa tudo.

Você encontra camisinhas cheias, escorrendo pelo carpete. Você encontra calcinhas jogadas no box do banheiro. Você encontra tufos de cabelo caídos ao pé da cama. Você é de confiança, então limpa, organiza e joga o resto fora.

Você pode continuar ouvindo Raça Negra, desde que seja bem baixinho.

Toda dengosa...

A secretária diz que está muito contente com seu trabalho, diz que você é o melhor que já tiveram e que foi muito triste o fim dos outros empregados. Ela está te elogiando ou te ameaçando?

Você passa por outra entrevista. Um outro deputado qualquer. Essa secretária faz perguntas sobre sua família, como se eles já não soubessem, certo?

Você escuta que o partido está planejando uma manobra política para fugir de algumas investigações, mas você não está lá. Não pode estar lá. Você escuta no corredor, quando cruza com duas secretárias, mas é invisível e surdo.

Elas te olham e você já sabe. Se falar com alguém sobre isso....

Você sabe que está crescendo na profissão, que está sendo reconhecido. Você passa a limpar o quarto de um senador. É o topo, você imagina.

Você tira o pó das simples molduras de plástico com fotos de família. Você tira camisinhas usadas que estão boiando na água do vaso sanitário. Você amarra e joga tudo no lixo.

Você escuta que o partido está tendo dificuldades. A imprensa está caindo matando em cima de um dos líderes do senado. Você torce para que não seja o seu senador.

Pela manhã você limpa o quarto de seu primeiro deputado e encontra uma dúzia de carreiras finas e longas, intocadas.

A secretária diz que ele precisou sair muito cedo.

Você decide cheirar uma delas, mas limpa as outras.

Você trabalha com prazer, é um bom emprego. São homens bons. Fazem o que fazem, pelo bem do povo.

Consegue imaginar o que é representar milhares de pessoas?

Eles precisam relaxar, é muita pressão, sabe?

Precisamos compreender, o Brasil não anda bem das pernas.

Parabéns, ela diz quando você completa seu 4º ano como faxineiro. Já acumula três quartos. Dois grandes senadores e um promissor deputado.

O capitalismo reconhece quem trabalha.

Você ganha bem e o pó que eles cheiram é do melhor que existe.

Você não vê mais sua família e agora você sonha que o seu Senador vence a eleição. Você sonha com isso.

Ele aparece no meio da manhã e te encontra com o nariz atolado na mesa de jantar. Ele pigarreia e você se vira com o nariz branco.

Você já trabalha pra mim há 3 anos, ele diz. Você responde que trabalha a 4 anos e 3 meses. Ele diz que isso é muito bom, e você apenas balança a cabeça, indicando que sim e limpa o nariz, é claro.

Ele coloca a mão nos bolsos de dentro do terno e tira um saquinho lacrado. É o mesmo pó branco.

Eu acabei de conseguir essa, ele diz. Você quer? Ele está oferecendo.

Você diz que está trabalhando, está limpando. Ele diz que isso é besteira, vamos uma só. Uma de cada, ele insiste.

Ele despeja o pó e organiza a carreira em uma linha reta e fina, tão bem-feita. É lindo de se ver. Se o próprio Deus decidisse fazer uma carreirinha para você, ela seria perfeita como aquela.

Eu acho que vou ganhar, ele diz. E você pergunta, ganhar o que, tomando cuidado para não soprar o pó para todo o quarto.

A eleição, ele responde.

É claro que vai, você diz se preparando para aspirar tudo.

Você passa no corredor por outros faxineiros, alguns que estão há mais tempo que você no negócio. Eles não gostam de você.

Você agora está ajudando o senador a transferir suas coisas para o Palácio da Alvorada. Eles não podem suportar isso.

Você ganha novos materiais de trabalho. Um aspirador que não faz barulho. Uma vassoura com suas iniciais em pequenas pedrinhas brilhantes, e sempre tem uma carreira perfeita em um espelhinho debaixo da cama do presidente.

Dá pra acreditar? Ele faz uma carreira toda manhã, para você. Ele é o presidente, mas faz uma carreira para você. Especialmente para você.

E você trabalha para o presidente da república.

Você é amigo do presidente da república.

E você já não escuta mais nada e quando escuta sabe a quem deve contar.

Ele é generoso, sabe?

Sempre vale a pena.

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